Ler e escrever
Ler e escrever: um elixir de vida na terceira idade
Vou contar-vos acerca de uma doce idosa, doente de Alzheimer, que, aos 83 anos, depois de um decréscimo da sua qualidade de vida intelectual e emocional (...), teve força de vontade para combater esses demónios.
O sabor que as palavras têm dão cor à vida e dão vida à vida e qualidade a essa vida. As palavras leem-se, revilêem-se. As palavras escrevem-se, escrevivem-se. Deixem-me, sem pretensiosismo, tentar imitar o dom de criação de palavras que Mia Couto põe na sua escrita.
O exercício da leitura e da escrita são poderosos instrumentos revigorantes para o cérebro. A atividade intelectual na terceira idade é fundamental para manter os mais idosos ativos e para evitar ou retardar o surgimento ou a progressão de doenças neurológicas degenerativas, que levam a memória e trazem as demências. A investigação tem demonstrado que o treino do raciocínio indutivo, da memória e de outras funções mentais é importante na manutenção da saúde mental.
"Mente sã em corpo são." Para o corpo são, exercício físico e boa alimentação. Para a mente sã, exercício intelectual e bom alimento para ela. É de mente sã que eu vou falar, embora não nos possamos esquecer de manter o corpo são: um não vive bem sem o outro estar em forma. Vou dar exemplos reais de histórias de vida em que a leitura e/ou a escrita deram vida à vida e lhe acrescentaram cor, sabor, prazer e qualidade.
Vou contar-vos acerca de uma doce idosa, doente de Alzheimer, que, aos 83 anos, depois de um decréscimo da sua qualidade de vida intelectual e emocional, em que as memórias se confundiam e as manias ganhavam terreno juntamente com a depressão e a irritação, teve força de vontade para combater esses demónios. Entre outras armas, a leitura esteve sempre presente. A par com a revileitura (em parceria com os medicamentos, o exercício físico e o carinho da família), começou a assistir-se ao renascer do que já se pensava perdido. O cérebro como que rejuvenesceu e foi-lhe possível não apenas saborear as histórias dos muitos livros que lia, mas também a qualidade literária com que eram tecidos, nomeadamente a magia das palavras criadas por Mia Couto. Depois seguiu-se um aumento da atividade de escrita, há muito condicionada a algumas cartas para a família, através da tradução de uma história francesa e respetiva ilustração, para uma criança da sua estima, como anos antes tinha feito para os netos.
Deixem-me contar-vos acerca de um senhor que, depois de se reformar, descobriu o prazer da escrita aos 68 anos. Começou a pesquisar (lendo, ouvindo, conversando), e as histórias e os poemas foram nascendo, num processo de escrevivência, em que também o seu cérebro rejuvenesceu, a vida ganhou mais interesse e novos objetivos.
Deixem-me contar-vos ainda como a literatura serve de elo de comunicação entre gerações. Sempre o foi entre mim e as duas pessoas admiráveis de que falei. Foi-o entre uma filha e uma mãe, que sempre partilharam leituras além de afetos, quando a segunda se encontrava em estado terminal, já sem conseguir falar. A filha selecionou um texto de Rubem Alves (2002) para ler à mãe, no hospital, pretendendo comunicar-lhe como a considerava sábia, apesar da sua baixa escolaridade: "O erudito é aquele que ajunta muitos saberes. O sábio é aquele que, saboreando os saberes ajuntados, se dá conta que muitos deles não têm gosto, ou que têm um gosto que não lhe agrada. O sábio - degustador - livra-se deles. O erudito soma saberes. O sábio diminui saberes. Ele escolhe o que é essencial. Os saberes essenciais são aqueles que nos ajudam a viver". O olhar da mãe, o seu sorriso, a sua expressão facial mostravam compreender o que ouvia e denunciavam o que lhe ia na alma e que não podia traduzir em palavras. Esse dia foi o último em que filha e mãe puderam comunicar, numa partilha de afetos, de palavras, de uma vida que as uniu e que se traduziu num momento final de felicidade para a mãe (e também para a filha), numa comunhão perfeita através da literatura, que lhes permitiu esta despedida.
Serão estas histórias acasos? Não. Ler e escrever são atividades altamente estimulantes para o cérebro e não é preciso ter estudos elevados para as realizar e apreciar; "são saberes essenciais" que nos podem ajudar a viver. Martín (2007) diz que, "assinalado o interesse da estimulação, defendemos que a educação, ao proporcionar um conjunto de padrões de atividade intelectual (por exemplo, através da leitura, da escrita, de atividades discursivas que exercitam o desenvolvimento da linguagem e do pensamento, etc.), ajuda à manutenção dos níveis de ativação cerebral ou, em muitos casos, a recuperar e a compensar a perda de estimulação ambiental ou contextual, que ocorre particularmente depois da reforma".
À leitura e à escrita podemos acrescentar outras atividades que também exercitam o cérebro, como, por exemplo, fazer palavras cruzadas, jogar cartas ou outros jogos, bordar ou fazer renda, construir peças de artesanato. Da prática de todas elas, de acordo com os gostos e os hábitos de cada idoso, resultarão benefícios como a estimulação do cérebro, o sentimento de rejuvenescer, o gosto pela vida.
NOTA: Gostaria de dedicar este texto à minha querida mãe, de quem herdei o prazer da leitura e da escrita e em quem tive o privilégio de sempre encontrar parceira de diálogo e de interesses nesse (como noutros) domínio.
Bibliografia:
Martín, A. V. (2007). Gerontologia educativa: Enquadramento disciplinar para o estudo e intervenção socioeducativo com idosos. In A. R. Osório & F. C. Pinto (eds.), As pessoas idosas: Contexto social e intervenção educativa. Instituto Piaget
Alves, R. (2002). Estórias maravilhosas de quem gosta de ensinar. Porto: Edições Asa.
(FONTE: ARMANDA ZENHAS – EDUCARE)
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